Virgílio Vieira Tebas

«Pasmo sempre quando acabo qualquer coisa. (...) O meu instinto de perfeição deveria inibir-me de acabar; deveria inibir-me até de dar começo. Mas distraio-me e faço.» (O livro do desassossego, 152)

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« Virgílio Vieira Tebas é, até prova em contrário, o maior - senão mesmo o único - escritor falhado do século XXI em Portugal. Nasceu algures no tempo e no espaço... Está vivo actualmente (ou assim o parecia da última vez que foi visto), não se sabe bem onde. Criador da cantiga de inimigo, é também dono de um currículo inqualificavelmente extenso... Consta que teve de pagar (muito) para ver os primeiros textos publicados. Concorreu recentemente a um prémio literário, tendo conseguido não só não ganhar mas também ser classificado como "a pior proposta literária" (com direito a confiscação e destruição de bens pela polícia secreta). Mantém um 'blog' - com o título curioso de "Virgílio Vieira Tebas" - ao qual, carinhosamente, se refere como "vlog". » em revista Big Ode #4 (http://big-ode.blogspot.com)

Monday, December 26, 2011

SUICÍDIOS EXEMPLARES (VIII): NELIZ FATAL

Neliz era um tipo pacato, ensimesmado. Aborrecido até. (A título de curiosidade refira-se que nasceu no dia 25 de Dezembro, facto que, entre os conhecidos, lhe dava uma espécie de aura anti-messiânica.)
O seu trabalho no local de emprego consistia em cuidar do arquivo "morto" – expressão que desagrada deveras aos especialistas na matéria e também não lhe agradava particularmente – e o seu local de trabalho estava situado na cave.
Neliz estava sempre lá sozinho, excepto quando havia inspecções (o que acontecia raramente) ou precisava de ajuda (o que acontecia esporadicamente).
Dava-se bem com todos os colegas (talvez por não saber o que diziam dele quando não estava presente) mas a única pessoa que poderia considerar amiga – pois estavam juntos fora do local de emprego, fora do horário de expediente – seria o Josué, uma espécie de pau-mandado-para-toda-a-obra do departamento de logística.
Neliz ia a casa de Josué uma ou mais vezes por semana, depois do trabalho, para ver televisão, jogar videojogos, conversar sobre a vida ou fazer outras coisas que não fazia em casa nem no local de emprego. Josué tinha ido a casa de Neliz duas vezes ou menos desde que se conheciam.
Neliz estava numa fase de introspecção (mais ainda que habitualmente), da qual sairia resoluto e com uma ou duas frases que aplicaria, muitas vezes despropositadamente, em várias situações, nas semanas seguintes. (Havia quem dissesse que estas suas fases surgiam sempre que se aproximava a data do seu aniversário…)

No seu dia de anos, tendo sentido a obrigação pungente de ir trabalhar (em verdade, não tinha muito para fazer fora dali)... Estava nervoso quanto baste (como de cada vez que lhe pediam algo directamente, em vez de ter de se limitar a fazer o que fazia oito horas por dia, cinco dias por semana, desde há doze anos). Tinham-lhe pedido um documento que não sabia onde estava. E, descobriu depois, havia que o ir buscar ao sítio mais inóspito da cave, um canto bafiento e mal iluminado. A localização do dito documento não tinha sido fácil (que saudades dos tempos em que nem tudo estava informatizado) mas o pior estava por vir.
Decidido a dar boa imagem de si nesta nova fase da sua vida, vai buscar o escadote e uma lanterna. Sem hesitar, abre o escadote, sobe, aponta a luz... "Cá está." A pasta onde se encontra o dito, o almejado papel (que ele não sabe para que servirá). Retira a pasta e segura-a com uma mão aberta... Com a mão que segura a lanterna tenta tirar o documento, que, do tempo em inactividade, está colado aos outros; desequilibra-se, agarra-se à gigantesca estante metálica...!

No dia seguinte, Josué, tendo estranhado a falta de companhia para o pequeno-almoço, entrou na cave à procura do colega, que jazia inanimado, sob a estante e tudo o que esta continha.
Assustado, tenta reanimar Neliz, que, como últimas palavras, diz: "a ansiedade é fatal."