Virgílio Vieira Tebas

«Pasmo sempre quando acabo qualquer coisa. (...) O meu instinto de perfeição deveria inibir-me de acabar; deveria inibir-me até de dar começo. Mas distraio-me e faço.» (O livro do desassossego, 152)

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« Virgílio Vieira Tebas é, até prova em contrário, o maior - senão mesmo o único - escritor falhado do século XXI em Portugal. Nasceu algures no tempo e no espaço... Está vivo actualmente (ou assim o parecia da última vez que foi visto), não se sabe bem onde. Criador da cantiga de inimigo, é também dono de um currículo inqualificavelmente extenso... Consta que teve de pagar (muito) para ver os primeiros textos publicados. Concorreu recentemente a um prémio literário, tendo conseguido não só não ganhar mas também ser classificado como "a pior proposta literária" (com direito a confiscação e destruição de bens pela polícia secreta). Mantém um 'blog' - com o título curioso de "Virgílio Vieira Tebas" - ao qual, carinhosamente, se refere como "vlog". » em revista Big Ode #4 (http://big-ode.blogspot.com)

Friday, January 04, 2013

HOMICÍDIOS EXEMPLARES: 666

Eram oito e meia da manhã. A senhora idosa tinha-se levantado cedo, como todos os dias desde há muitos anos, e andava tranquilamente, desfrutando de mais um passeio ao sol naquela vila junto ao mar. Os seus pensamentos oscilavam entre os prazeres da reforma – poder voltar para casa e barrar o pão ainda quente com manteiga… – e os afazeres do dia.

Puxava um carrinho de compras…

Na direcção contrária ia o rapaz mal-encarado, todo de preto (excepto o fio de prata com o crucifixo invertido ao pescoço), até o cabelo e a barba, até as unhas e os olhos; com a roupa cheia de imagens de caveiras sobre ossos cruzados, pentagramas invertidos, o número “666” e outras que a senhora não reconhecia nem percebia.

Talvez pela bebedeira da noite que ainda conservava em si (ou que ainda o conservava nela), talvez por pura malvadez, o rapaz alto e forte não se desviou da senhora marreca e franzina, e colidiu com ela, quase a derrubando.

Mas a senhora não se desfez e olhando o rapaz nos olhos, com um sorriso disse-lhe, numa voz tremulamente doce: “Perdão”.

Ao que o rapaz vociferou: “…o caralho!!”

Ela, mantendo a compostura, respondeu calmamente: “Jovem, onde te levam tais modos? Com certeza tens objectivos, nem que seja apenas espalhar a maldade no mundo.”

O bruto estava agora quase letárgico.

“Concordarás que tal mensagem ou até actos se disseminarão melhor com bons modos.”

“Quê?!”, grunhiu.

“Reparei no que ostentas. Quão bem conheces o teu mestre? Se soubesses um pouco da sua história saberias imitar-lhe o exemplo de hipocrisia, pois é a melhor forma, quando aprimorada, de levar barco a bom porto.”

O silêncio parecia espelhar algum interesse, e a ressaca...

“Agora… Atenta, pois o verdadeiro anjo do mal passa despercebido, não tem figura nem memória, é anónimo, não existe.”

Os olhos do rapaz inquietavam-se, a boca começava a salivar…

“E quando dás por ele, quando dás por mim…”

O rapaz parecia agora verdadeiramente ansioso.

“…tens uma faca espetada no rim!”


Fim