Virgílio Vieira Tebas

«Pasmo sempre quando acabo qualquer coisa. (...) O meu instinto de perfeição deveria inibir-me de acabar; deveria inibir-me até de dar começo. Mas distraio-me e faço.» (O livro do desassossego, 152)

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« Virgílio Vieira Tebas é, até prova em contrário, o maior - senão mesmo o único - escritor falhado do século XXI em Portugal. Nasceu algures no tempo e no espaço... Está vivo actualmente (ou assim o parecia da última vez que foi visto), não se sabe bem onde. Criador da cantiga de inimigo, é também dono de um currículo inqualificavelmente extenso... Consta que teve de pagar (muito) para ver os primeiros textos publicados. Concorreu recentemente a um prémio literário, tendo conseguido não só não ganhar mas também ser classificado como "a pior proposta literária" (com direito a confiscação e destruição de bens pela polícia secreta). Mantém um 'blog' - com o título curioso de "Virgílio Vieira Tebas" - ao qual, carinhosamente, se refere como "vlog". » em revista Big Ode #4 (http://big-ode.blogspot.com)

Thursday, December 20, 2012

E-JACULATÓRIA

ó deus dos circuitos eléctricos, deus da luz!

a lua seduz este seu pobre ser

(...) ao ilimitado e terno

abraço da eternidade, irmã sua

o sol reluz, reduz a essência à infinitesimal potência desagregadora…

Friday, December 07, 2012

AGORA ABSOLUTAMENTE…

– (aproxima-se do sujeito sentado ao balcão) O que é que estás a fazer?
– (impávido e sereno, como se falasse consigo próprio) A comer um queque. Quero dizer, a tentar…
– Para quê?
– Para esquecer.
– Esquecer? O quê?
– Já não me lembro. O que é que acontece?
– O que é que acontece?!
– Se eu me recusar.
– O quê?
– A comer.
– Ah. Nada. Acabas morto numa vala qualquer.
– (ri-se mas não muito)
– Também posso provar?
– O quê?
– O queque! O que é que há mais?
– (ainda mais introvertido) Há tanto tempo que não como como devia. Não consigo. E se como fico agoniado.
– Eu sei. É lixado. Vá, chega-te para lá… (toca-lhe no ombro, empurrando-o ligeiramente)
– (sai do banco enquanto olha pela primeira vez para o outro) Quem é você?
– (enquanto se senta) O quê?
– (indignado) Quem é você?!
– Eu? Como assim?
– Sim! Chegar aqui e afastar um tipo da sua comida…
– Nada disso! Eu não queria comer sequer… Mas isto até tem bom aspecto. (olha para o prato com ar guloso)
– Acabou-se… Um tipo já nem pode comer sossegado.
– Ouve lá, tu nem ‘tavas a comer, ‘tavas para aqui só a… a meditar ou sei-lá-o-quê!
– (novamente cabisbaixo) Estava a pensar no mar. Que saudade!
– (ri-se mas não muito e volta a virar-se para o balcão, murmurando) Ele há cada um.


– (sai do café deixando a conta por pagar e continuando a falar consigo próprio, já completamente abstraído do outro e de tudo o resto) Se eu soubesse… Nem de lá tinha saído.
(vai a assobiar uma canção triste pela rua a meia-luz até ser interpelado por um sem-abrigo, que lhe estende a mão sem dizer nada)
– (incomodado) O que é que quer? Quer o quê, você?!
(o sem-abrigo continua a olhar para ele, andrajoso, olhos muito abertos e a esclera muito branca contrastando com tudo o resto muito escuro, e a mão estendida agora toca-lhe na manga do casaco)
– (a afastar-se) Deixe-me em paz! Que porra…


(o outro, tendo acabado de comer, limpa as beiças a um guardanapo e prepara-se para se ir embora mas o empregado percebe e aproxima-se) – Desculpe, já pagou?
– (tacteando os bolsos do casaco) O meu amigo deve... Ele nunca se vai embora sem pagar! (ri-se mas não muito, meio encalacrado)
– Se não se importa, vou só aqui confirmar. (olha para o bloco e logo depois para o cliente) Não. Não está pago.
– (ri-se de uma forma que deixa transparecer algum nervosismo) Pois, mas… Sabe o que é… Combinei com o… Não vim preparado…
– (inexpressivo) Percebo. Acontece.
– Também… Foi só um queque e um copo de água!
– Mas não é de graça!
– Se puder pagar noutro dia…
– (subitamente aliviado) Com certeza. Não se preocupe. Ficará na conta do Sr. Gervásio.
– (sorri meio enfadado e afasta-se, acenando)


– (o telefone já tocou algumas vezes) Está?
– O que é que estás a fazer?
– (como se falasse consigo próprio) Estava a tentar cozinhar o jantar.
– Hoje é o quê?
– Há já bastante tempo que não cozinhava. Já nem me lembrava...!
– Soa delicioso. Posso aparecer aí para provar um bocadinho?
– (parece ganhar consciência) Quem fala?
– Ah, antes que me esqueça, não paguei a conta, não tinha carteira.
– Vou desligar...
– Diz-me onde é.
– ...a comida está ao lume.
– Vá lá. Vais-me obrigar a descobrir sozinho?
– (desliga, não completamente seguro)


Ficara a pensar, a tentar lembrar-se do que o outro lhe tinha dito, enquanto comia o pequeno-almoço no seu terraço com vista para o rio. Estava uma manhã fria de Outono.
– (mastigando) Simplifica se queres problemas, complica se queres soluções. Ouvi isto uma vez...
Não conseguira responder...
– (continuando a mastigar) Hum. Esta torrada está uma bela merda. É que tu queres que gostem de ti mas não fazes nada por ninguém. Há pão que não nasceu para ser torrado.
Reparou que não era "incomodado" há... Quanto tempo? Estranhou, quase como uma vítima de rapto recém-liberta...


– (o outro, aparecendo do nada) É incrível.
– (absorto, enquanto faz as malas) Tenho de sair daqui.
– És como um fantasma...
– Voltar.
– Nunca to tinham dito?
– (tremendo ligeiramente) Está tanto frio!
– Olha lá uma coisa.
– Lá não.
– Temos andado a brincar.
– (sonhador) Há sol e…
– Eu falo contigo, tu foges.
– …as crianças brincam.
– Mas sabes perfeitamente, tão bem como eu…
– As pessoas riem.
– …quem sou eu.
– Os animais dançam.
– Andas é a fingir que não…
– Comer não custa nada.
– A tapar o sol com a peneira.
– (algo se agita dentro dele, ele pára) O sol.
– É que tu queres que gostem de ti mas não fazes nada por ninguém.
– (ensimesmado) Ninguém.
– Depois queixa-te.
– (voltando ao sonho) Era tão bom…
– Estás aí?


Agora era quase indiferente. Até podia já ter partido. Mas não, tinha estado ali, a ouvir… E ainda se lembrava.